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Análisis - Costa Rica

Debate na Costa Rica sobre radiodifusão: entre a Lei da Mordaça e o debate interesseiro da mídia

“O erro político da administração Solís – de repetir normas já vigentes em uma proposta de lei – motivou as reclamações, aparentemente legítimas, mas que na verdade disfarçavam uma campanha que pretendia desacreditar o debate sobre uma nova lei que regule os serviços de rádio e televisão do país.”

Giselle Boza*/ Costa Rica, junho de 2015

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Uma proposta de lei, surgida no seio do Ministério de Ciência, Tecnologia e Telecomunicações (MICITT) da Costa Rica para regular os serviços de radiodifusão sonora e televisiva no país provocou, nas últimas semanas, um verdadeiro cisma no Poder Executivo: caíram dois ministros e um secretário-executivo, uma Comissão Presidencial foi formada para assessorar o chefe do Executivo sobre temas relacionados à liberdade de expressão e um novo Ministro da Comunicação foi nomeado. A questão não era de pouca importância: os mais importantes veículos de imprensa do país alardeavam a tentativa do governo do presidente Luis Guillermo Solís de promover uma lei da mordaça, por incluir na prévia do projeto de lei uma série de artigos que puniam a publicação de alguns conteúdos.

No entanto, a manobra da mídia omitiu que tais normas já existem no marco jurídico da Costa Rica, na mesma Lei de Rádio e Televisão que as operadoras comerciais vêm defendendo por seis décadas. O erro político da administração Solís – de repetir essas normas já vigentes em uma proposta de lei – motivou as reclamações, aparentemente legítimas, mas que na verdade disfarçavam uma campanha que pretendia desacreditar o debate sobre uma nova lei que regule os serviços de rádio e televisão do país.

A posição bastante cômoda que ocupam os operadores comerciais com a Lei, que é de 1954, explica por que, durante tantos anos, os meios de comunicação nunca questionaram a mordaça vigente. A Lei de Rádio permite a prorrogação automática das concessões, a cessão das mesmas – em quantidades exorbitantes – com uma mera notificação ao Poder Executivo, a aplicação de impostos ínfimos calculados com base na economia dos anos 50 e não reconhece diversos operadores; na verdade, a Lei tem sido um instrumento a serviço da radiodifusão comercial. Não prevê nem políticas afirmativas para o estímulo à produção audiovisual de caráter nacional e independente.

Este marco normativo obsoleto, que permitiu a concentração de frequências em mãos de alguns grupos econômicos e a exclusão da radiodifusão com fins sociais, que carece de garantias para a diversidade e a pluralidade e que, além de tudo, contém normas – como as questionadas – que sancionam a publicação de alguns conteúdos, é o único referente legal para o processo de migração à TV digital no qual o país está imerso. Esta situação preocupa a acadêmicos e a alguns setores sociais, que consideram que a digitalização vai intensificar desigualdades frente a ausência de políticas públicas.

A descomedida manobra jornalística sobre a denominada Lei da Mordaça e as reações dos setores de oposição ao governo tiveram como resultado a demissão da ministra de Ciência, Tecnologia e Telecomunicações, Gisela Kooper, e do secretário-executivo da pasta, Allan Ruiz. A mesma pressão da mídia causou também a substituição do ministro da Presidência, Melvin Jiménez.

No meio da discussão, a necessidade do país de avançar a um marco jurídico que atenda aos mais alto padrões de liberdade de expressão em termos de diversidade, pluralidade e não-discriminação sempre foram invisibilizados.

A preocupação dos setores acadêmicos, em especial do Programa de Liberdade de Expressão, Direito à Informação e Opinião Pública da Universidade da Costa Rica (PROLEDI) é que a campanha organizada pelas mais importantes empresas de comunicação, com o apoio da Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), resulte na debandada do governo do debate por uma nova Lei de Rádio e Televisão.

Junto à assinatura da Declaração de Chapultepec pelo presidente Solís e com o compromisso de vetar os incisos vigentes da Lei de Rádio – que ainda que inexplicáveis, representam uma ameaça à liberdade de informação – foi possível notar nos encontros da SIP com setores locais uma tentativa de questionar a aqueles que propõem uma mudança de modelo na radiodifusão da Costa Rica.

O debate

A discussão, na Costa Rica, de uma nova lei que regule a radiodifusão sonora e televisiva tem origem não apenas na existência de uma resolução da Controladoria Geral da República – Informe nº DFOE-IFR-IF-05-2013 – que obriga o Poder Executivo a propor um projeto de lei mas, em especial, pela pressão dos setores acadêmicos e sociais que consideram, já há vários anos, que a Costa Rica conta com um marco normativo obsoleto, que não está ajustado às transformações sociais, culturais e tecnológicas das últimas décadas, e que limita o amplo exercício dos direitos à comunicação e à informação por parte dos cidadãos.

Antes do escândalo, os operadores de rádio, reunidos na Câmara Nacional de Rádio, defendiam a necessidade de manter a lei como está. “Acho desnecessário mudar a lei de 1954. Propusemos ao MICITT um novo regulamento técnico, para adequá-la”, revelou Andrés Quintana, presidente honorário da Câmara, que é uma organização privada.

Mesmo que existam opiniões diversas entre os próprios operadores comerciais sobre a necessidade de atualizar o marco jurídico da radiodifusão, aqueles que estão a favor tampouco estão dispostos a ceder e mudar o modelo. A proposta de alguns setores sociais e acadêmicos de abrir espaços para iniciativas cidadãs e comunitárias e fortalecer os meios públicos é amplamente criticada por estes setores, que consideram que há uma tentativa de importar modelos de países com alta incidência de intervenção pública nos meios de comunicação.

O mesmo projeto de lei do governo não foi só criticado por incorporar as tais normas de controle de conteúdos, ou por copiar textualmente alguns artigos de leis estrangeiras, mas também – o que mostra que, no fundo, se esconde uma crítica à mudança de modelo – foi censurado por incorporar temas como a reserva de espectro para fins sociais, o reconhecimento dos meios comunitários, limites para o capital estrangeiro e políticas afirmativas para a produção nacional, dentre outros.

Entre os setores acadêmicos, houve o reconhecimento de que, pela primeira vez, o governo submetia a discussão um conjunto de propostas para avançar a uma mudança nos serviços de radiodifusão sonora e televisiva – sem deixar de elaborar um conjunto de objeções ao texto do projeto de lei. Por exemplo, a proposta do MICITT não estabelecia uma norma clara, precisa e admissível da obrigação do Estado em garantir a diversidade e o pluralismo no sistema de serviços de radiodifusão – ponto essencial para o desenvolvimento de uma política pública para este tema. O texto se concentrava no papel do estado como promotor do desenvolvimento dos serviços em zonas rurais, de interesse social ou em áreas de fronteira, mas não estabelecia o dever de garantir a diversidade e o pluralismo nos serviços de radiodifusão, em todos os âmbitos de cobertura, reconhecendo uma diversidade de operadoras e prevenindo a concentração de frequências em poucas mãos.

Desde dezembro de 2014, a representação acadêmica nos workshops de consulta convocadas pelo MICITT tem advertido que, ainda que o texto admitia – em seus objetivos principais – a obrigação de garantir, aos operadores públicos ou privados, liberdade de expressão, liberdade editorial, independência e a proibição de censura prévia, a penalidade à transmissão de diversos conteúdos, descritos por conceitos jurídicos indeterminados – como por exemplo notícias falsas, linguagem vulgar ou contrária aos bons costumes, linguagem injurioso – resultavam sendo inconvenientes.

No entanto, a administração do presidente Solís não conseguiu prever a reação dos meios de comunicação a um debate que tinha o propósito de ser aberto e transparente, e que por anos vários governos tinham optado por postergar.

A discussão pública sobre uma nova Lei de Rádio e Televisão na Costa Rica parece retomar um bom caminho. Enquanto setores sociais e acadêmicos instigam um projeto de lei de iniciativa popular, o presidente Solís e seu governo baixaram o tom do debate quando assinaram, frente aos representantes da Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), a Declaração de Chapultepec, e anunciaram um projeto de lei para vetar as tão questionadas normas vigentes.

O Programa da Liberdade de Expressão da Universidade da Costa Rica criticou a decisão do governo de promover vetos parciais à Lei de Rádio de 1954, que mesmo que sejam urgentes e necessários, postergam o debate sobre aspectos de igual urgência e necessidade sobre uma lei que, no todo, limita o exercício da liberdade de expressão da cidadania.

* Advogada e jornalista. Coordenadora do Programa de Liberdade de Expressão, Direito à Informação e Opinião Pública (PROLEDI) da Universidade da Costa Rica. Professora de Direito da Comunicação na Escola de Ciências da Comunicação Coletiva e pesquisadora do Centro de Pesquisa em Comunicação (CICOM) do Centro de Investigação em Estudos Políticos (CIPE) da mesma Universidade.

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