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Democratização dos meios de comunicação e governabilidade na América Latina

“Vendo pelo lado dos atores políticos, o problema está no quanto estas iniciativas entraram em tensão com os imperativos da governabilidade. Além de seus compromissos e de suas preferências pessoais por um programa ou outro, a preocupação pela sobrevivência e pela reprodução política inexoravelmente são uma    questão central entre aqueles que assumem postos de governo.”

Philip Kitzberger*/ América Latina, maio de 2015

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Desde o começo deste século, a discussão sobre o papel dos meios de comunicação tem gerado uma mobilização política sem precedentes na América Latina. Esta politização do tema tem mudado drasticamente a natureza da ordem midiática existente, inaugurando um debate inédito sobre os déficits democráticos dos meios de comunicação.

Em uma boa parte da região latino-americana, o câmbio político pós-neoliberalismo criou o clima propício que (re)motivou a mobilização dos atores sociais comprometidos com demandas de democratização.

Uma série de experiências governamentais de orientação progressista mostra que há alguma abertura a estas demandas. Algumas, como as comandadas pelo Partido dos Trabalhadores (PT) no Brasil e pelo Partido Frente Amplio no Uruguai, responderam a compromissos históricos com a democratização dos meios. Outras, conduzidas por novas lideranças surgidas em momentos de crise, ensaiaram algum apoio a estas agendas devido a seu próprio confronto com setores estabelecidos, fortemente representados nos meios de comunicação tradicionais.

Porém, mesmo em casos como o mexicano, com governos alheios a demandas de democratização, a mobilização social com vistas a gerar um mal-estar contra um dos sistemas de meios mais concentrado da região forçou a inserção do tema na agenda política.

Além deste cenário inédito, a medida (e a forma) com a qual estas agendas conseguiram se transformar em reformas legais orientadas à democratização do setor variaram bastante em função de diferentes relações de força encontradas em diversas arenas sociais, políticas e institucionais.

Vendo pelo lado dos atores políticos, o problema está no quanto estas iniciativas entraram em tensão com os imperativos da governabilidade. Além de seus compromissos e de suas preferências pessoais por um programa ou outro, a preocupação pela sobrevivência e pela reprodução política inexoravelmente são uma questão central entre aqueles que assumem postos de governo. A partir de uma perspectiva similar, os atores que controlam recursos que potencialmente são uma ameaça à própria estabilidade política passam a ser um ponto estratégico a ser levado em consideração. As instituições da mídia controlam ideias, informação, agenda, reputações, visibilidade e legitimidade política. Na América Latina, estes recursos estão fortemente concentrados em grandes conglomerados e seu controle está assentado em uma cultura instrumentalista que faz com que tais recursos sejam usados em função de interesses corporativos ou agendas políticas particularistas. Esta configuração faz parte de cenários nos quais alguns atores midiáticos específicos são vistos como estratégicos para a governabilidade.

Mesmo com a erosão do domínio das audiências, influenciada pelas mudanças nas tecnologias da comunicação, a persistente reputação de certos atores dos meios de comunicação tradicionais os alça a efetivos poderes fáticos que afetam o processo político.

Este poder, que resulta de uma reputação adquirida anteriormente, permite que construam um poder efetivo. Inibe que certas questões sejam parte da agenda política. Facilita a conquista de espaços de poder institucional[1], a colonização de órgãos de Estado e a negociação, em nível de cúpulas, de proteções e reservas de mercado para seus interesses, em ambientes cada vez mais competitivos.

Mesmo que este seja um fenômeno generalizado na região, os diversos contextos particulares de cada país apresentam dinâmicas variáveis, que levam a diferentes opções estratégicas. Na Argentina, por exemplo, o primeiro governo Kirchner nasceu de uma enorme crise política, com uma escassa legitimidade eleitoral, e institucionalmente débil. Neste contexto genético, o entendimento pragmático com o Grupo Clarín, visto como indispensável para a interlocução com diversos setores sociais, apareceu como única opção estratégica para garantir a governabilidade. Desde o conflito agrário de 2008, a cobertura hostil que os meios do grupo faziam ao governo rotularam o Clarín – na visão do Executivo – como irremediavelmente comprometido com sua derrota política. Frente a esta perspectiva – e a partir da aceitação instigada por alguns setores da sociedade civil da necessidade de desconcentrar o mercado de meios de comunicação – o governo optou por reverter [sua relação com a mídia] a uma estratégia de confronto radical que abriu as portas à reforma legal.

O exemplo do Brasil oferece um contraste interessante à experiência argentina. Seria difícil afirmar que o conglomerado comandado pela Rede Globo tem enfrentado uma diminuição em sua reputação de ator estratégico capaz de condicionar a governabilidade. Na verdade, mesmo com a rivalidade histórica, o PT chegou ao governo em 2003 ensaiando um entendimento pragmático análogo ao mencionado anteriormente. A cobertura hostil promovida a partir do estouro da crise do Mensalão, porém, não reorientou a estratégia do governo a um confronto radical comparável ao caso argentino.

Quais são as razões dessa diferença de comportamento?

Um fator bastante importante é a sequencia de fatos que afetaram as percepções subjetivas relativas ao poder da mídia. O grupo dos Kirchner perdeu em 2009 a eleição legislativa realizada depois do início da hostilidade promovida pelo Grupo Clarín. Por outro lado, mesmo com uma perda de votos massiva entre as classes médias urbanas, Lula conseguiu se reeleger em 2006 com o apoio das classes populares do nordeste do país. Na sequencia dos acontecimentos, ambos governos tiraram lições diferentes sobre a capacidade dos meios de comunicação de afetar a sobrevivência política. Estas observações formaram parte da construção das respectivas opções estratégicas, em consonância com outros condicionantes políticos.

Em 2009, ainda nos primórdios de uma derrota eleitoral, o governo Kirchner conseguiu consolidar maiorias em ambas as câmaras do Poder Legislativo para que fosse aprovada a Lei de Serviços de Comunicação Audiovisual. No Brasil, obstáculos consideráveis dificultam uma potencial construção das maiorias necessárias para permitir uma reforma regulatória do setor da mídia.

A fragmentação do sistema de partidos fez do PT o partido progressista no governo na região com o menor número de representantes legislativos. Sozinho, o PT nunca superou os 18% de legisladores em nenhuma das câmaras desde que chegou ao governo. Somado a aliados da esquerda (com quem compartiria o compromisso reformista) nunca superou os 30%. O PT tem governado, na verdade, em uma coalizão ampla entre oito e 12 partidos, entre os quais alguns fortemente pragmáticos e outros diretamente  conservadores.

No Brasil, os legisladores são eleitos por um sistema eleitoral proporcional de lista aberta que, ao personalizar a concorrência eleitoral, os faz particularmente vulneráveis à visibilidade nos meios de comunicação. É um contraste com a Argentina, onde as listas fechadas dão maior peso e maior autonomia às organizações político-partidárias.

A esta maior influencia da mídia sobre os cargos políticos se soma a presença de uma complexa rede de interesses entre elites políticas e dos meios de comunicação no Brasil. Desde a redemocratização, a concessão de licenças para rádio e televisão a políticos locais tem sido um importante recurso para a obtenção de apoio por diversos governos. Desta forma, um alto porcentual de legisladores vem desenvolvendo interesses midiáticos locais. Muitos desses políticos são associados, na condição de afiliados, às grandes redes nacionais, em especial à TV Globo. Esta trama complexa já foi  chamada de “coronelismo eletrônico”. Sua maior expressão está no Poder Legislativo, como uma virtual “bancada da mídia”, que tem uma forte presença tanto na Câmara quanto no Senado e nas comissões legislativas específicas. Mesmo que na Argentina existam vínculos entre políticos e emissoras locais, estas conexões nunca se estenderam e conectaram em redes comparáveis.

Esta breve comparação expõe (sem esgotá-la) a importância dos contextos. O futuro das demandas de democratização da mídia depende de sua capacidade de articular – sem se perder no caminho – com as preocupações pela governabilidade dos aliados na arena política.

* Universidade Torcuato Di Tella e Conselho Nacional de Pesquisas Científicas e Técnicas (Conicet), ambos na Argentina.

Links relacionados:

Becerra: a concentração é muito alta na Argentina, mas a Lei não modificou muito esta estrutura (em espanhol)

Mídia e governos latino-americanos no Século XXI: as tensões de uma relação complexa (em espanhol).

A batalha pelos meios de Comunicação (em espanhol)

[1] A formação da chama “telebancada” no Congresso mexicano é um exemplo bastante eloquente.

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