A decisão a favor da RCTV não leva a uma perpetuação das licenças

A Corte IDH reafirma os padrões de pluralidade e de diversidade na radiodifusão.

Jesús Urbina Serjant*

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Alguns estudiosos das políticas de regulação de meios de comunicação têm se perguntado se a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) a favor de Marcel Granier (e outros) no caso contra o Estado venezuelano abriria as portas para uma perpetuação da titularidade das frequências radioelétricas. A suspeita provavelmente surgiu a partir da publicação da sentença, em 22 de junho, que determinou que a concessão do canal 2 seja restabelecida aos operadores da Radio Caracas Televisión (RCTV).

Leituras preliminares da decisão deixaram bastante otimistas os próprios requerentes da ação e aqueles que viram a interrupção das transmissões da RCTV como um dos maiores atentados à liberdade de expressão na Venezuela. No entanto, a sentença foi recebida inicialmente com receio tanto por quem era neutro quanto ao caso como pelos críticos aos serviços privados de televisão porque, para estes grupos, o “x” da questão é como devolver, na prática, a emissora à forma como ela estava antes do encerramento legal da licença, o que aconteceu, para todos os efeitos, em 27 de maio de 2007.

Por outro lado, não restam dúvidas de que a decisão ratifica a jurisprudência da Corte quanto a questões relacionadas à liberdade de expressão, além de confirmar a doutrina defendida pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos e pela Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão (RELE) quanto à diversidade e à pluralidade dos meios de comunicação.

O que certamente fica protegido com a sentença da Corte é o direito fundamental – reconhecido no artigo 13 da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH) – contra restrições indiretas e indevidas por parte do Estado na administração das frequências de radiodifusão, precisamente no processo de transformação das licenças. A decisão determina que a medida que decidiu pela não renovação da concessão da RCTV foi adotada com discriminação, violando assim o artigo 1º da CADH, e também sem o devido processo do qual trata o artigo 8º da mesma Convenção. Além disso, ficou decidido que nas demandas daqueles que entram na justiça venezuelana para tentar conseguir a anulação da decisão governamental, assim como para pedir uma medida cautelar para proteger os interesses difusos e coletivos dos dirigentes e trabalhadores da emissora de televisão, o Estado ultrapassou um prazo razoável e violou o direito que tinham de ser ouvidos por órgãos jurisdicionais – garantias que também estão previstas no artigo 8º da Convenção.

Contudo, para que se possa entender os alcances reais desta sentença, há que esclarecer que a Corte não estabeleceu o direito à titularidade de uma licença de radiodifusão para sempre, como se adiantaram em supor alguns críticos à decisão. Na verdade, o que é estritamente indicada como a reparação pela violação de direitos neste caso é apenas a reposição temporal da concessão do canal 2, seguida da abertura de um processo definitivo para outorga da frequência. Adicionalmente, a Corte determina que os bens da RCTV que foram confiscados por ordem judicial – equipamentos de repetição de sinal apreendidos a partir de medidas cautelares expedidas pelo Tribunal Supremo de Justiça da Venezuela – sejam devolvidos a seus legítimos donos, ou seja, os representantes na demanda.

O parágrafo 380 da sentença, no qual se alicerça o critério da Corte para decidir sobre o restabelecimento da licença, reitera a medida de reparação de danos “sem que isso acarrete um reconhecimento da propriedade da concessão pela RTVC”. O Estado ofendeu os direitos dos demandantes e ignorou as garantias judiciais necessárias para a efetividade da liberdade de expressão – o direito a ser ouvido e a um processo devido – em um trâmite de renovação de títulos que não seguiu os critérios estabelecidos na legislação do país:

… a lei determinava [que deveria ser realizado] um processo adequado para a transformação dos títulos e para a renovação da concessão; o cumprimento do mesmo foi deliberadamente omitido pelo Estado.

A Corte considera que este processo dissimulado constituiu uma violação direta à CADH, mas de forma alguma ordena a devolução definitiva da frequência para uso ad infinitum da RTVC, nem a renovação direta e automática da concessão a seus representantes, algo que erroneamente tem sido divulgado em alguns meios informativos na Venezuela.

Em sua argumentação para ditar a sentença, a Corte restringe o critério do direito de preferência reclamado pelos demandantes frente ao Governo e à justiça venezuelanas, limitando-o apenas a “uma consideração especial ou a uma certa vantagem que pode ou não ser outorgada, dependendo do que seja estipulado na normativa aplicável”. Isso é claramente uma prova da tendência dos juízes – mesmo daqueles que se abstiveram da decisão – em manter a jurisprudência da Corte no que se refere à pluralidade e à diversidade no uso do espectro radioelétrico, o mesmo que foi defendido pela Comissão e pela Relatoria Especial.

Para a Corte Interamericana, não resta dúvidas de que o Estado venezuelano, atuando contra a legislação e as normas que regulamentam a transformação de títulos, ignorou as garantias procedimentais no caso da RTVC, atuou indiscriminadamente e violou a CADH quando restringiu o exercício da liberdade de expressão de Marcel Granier e dos demais dirigentes e trabalhadores da emissora de televisão. Além disso, sua decisão no processo apresentado pela CIDH não deixa a desejar quanto a premissas de democratização do espectro: na verdade, ela reitera que deve haver um procedimento justo na outorga de licenças e reforça o valor primordial da proteção ao direito à livre expressão.

É impossível, então, imaginar que a decisão de 22 de junho gere um precedente a favor de que as licenças sejam concedidas perpetuamente. Ao contrário: a sentença da corte reforça os padrões de diversidade e de pluralidade promovidos pela Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos quanto aos trâmites administrativos de concessão e renovação de frequências radioelétricas.

Segundo a RELE-CIDH, o que seria justo – e nisso tem o respaldo da Corte em sua decisão – é que “seja evitada a outorga, o cancelamento ou a não renovação das frequências ou licenças por motivos discriminatórios ou arbitrários”.

* Pesquisador sobre regulação de meios de comunicação da Universidade de Zulia, na Venezuela.

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