Legislação sob medida na lei de telecomunicações: o nono transitório

Para alguns ingênuos, 2012 terminou com particular otimismo. Ainda lembro da sensação ao ler os seis compromissos do Pacto pelo México que prometiam transformar o setor de telecomunicações…

Opinião de Mony de Swaan*/ México, agosto 2014

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Para alguns ingênuos, 2012 terminou com particular otimismo. Ainda lembro da sensação ao ler os seis compromissos do Pacto pelo México que prometiam transformar o setor de telecomunicações. Sabia que com a proposta de estabelecer um novo regulador ficaria sem trabalho, mas também sabia que já não fazia sentido seguir fazendo-o sem acordos políticos, com janelas duplas, assim como com o preocupante déficit nas competências e no orçamento com que historicamente regulou a agora extinta Comissão Federal de Telecomunicações (COFETEL). Estava contente.

Em março de 2103, chegou a primeira advertência em relação ao verdadeiro alcance do ânimo reformista. “Por melhor que seja o texto constitucional, se não se aprova junto com a Lei regulamentar, vai terminar mal”, pressagiou um amigo não-dominante da indústria. Apesar de haver colaborado de perto com os principais atores envolvidos na reforma constitucional —ou precisamente por isso— não a esperava. Estava convencido que esta era a boa; que a classe política havia encontrado a maneira de livrar-se, por fim, dos poderes de fato em beneficio de milhões de mexicanos. Estava equivocado.

Tudo voltou à normalidade com a “nova” Lei Federal de Telecomunicações e Radiodifusão. Uma iniciativa presidencial vergonhosa passa por um processo legislativo de corte mafioso, se transforma em um parecer irrisório e termina com a aprovação de um texto cheio de omissões, barreiras, dedicatórias e presentes.  A prova mais clara de que algo havia saído terrivelmente mal foi a campanha midiática montada pelo governo, a inconstante oposição azul (me refiro ao Partido Ação Nacional, localizado na direita do espectro político), e alguns regulados. Resultava impossível distinguir um senador de um assessor da Movistar informando-nos que já podíamos consultar nosso saldo. O discurso era exatamente o mesmo. Estava indignado.

Muito se tem escrito e o que se deve aceitar primeiro é que a Lei não chega a reverter todos os benefícios contidos na reforma constitucional. Entretanto, talvez agora entendamos porque, faz um ano, alguns legisladores tateavam e acusavam a nossa Carta Magna de incluir demasiados dispositivos transitórios, demasiados detalhes, demasiadas precisões.  Estes, casualmente, são os mesmos que terminaram aplaudindo e aprovando o texto regulamentar, só incomodados por tudo aquilo no que a Constituição foi clara e exaustiva e, portanto, os impediu de mudar. Ainda assim, devemos reconhecer um louvável esforço de contra-reforma.

A Lei está cheia de artimanhas, de letra pequena, de uma repartição de mercados sancionada pelos poderes do Estado, de linguagem ambígua que convida ao litígio ou que inibe o funcionário que deve aplicá-la. Por mais leituras que se faça, simplesmente não se termina de encontrar parágrafos completos que deveriam envergonhar e manchar quem participou deste engano.

O artigo Nono Transitório é paradigmático do ocorrido e a expressão mais clara do cinismo parlamentar. Jamais se discutiu aberta ou publicamente, mas nunca passou despercebido. Mudaram-no de lugar várias vezes; prometeram eliminá-lo para logo encontrá-lo por aí. Especialistas em camuflagem o maquiaram, o rebatizaram, mudaram sua redação, jogaram com as fórmulas, trocaram o nome dos índices, sempre respeitando sua essência: permitir que um agente econômico possa regular a compra de 1,2 milhões de assinantes em um mercado que já concentra mais de 60%. Isto, em plena era da preponderância, quando supostamente não se tolerariam mais abusos, quando contávamos com um novo órgão regulador com poder e que bebíamos da taça da competição. Não, não é.

Não há espaço para entrar em detalhe. Há, contudo, para três informações. Primeira, dizer que o Nono Transitório é em todas perspectivas inconstitucional, pois usurpa por via regulamentar uma competência concedida pela Constituição ao IFETEL. O artigo 28 estabelece que o Instituto será a autoridade em matéria de competição no setor de telecomunicações. Essa competência não se outorga ao legislativo e, menos ainda, aos regulados para que sejam eles que sancionem suas próprias transações financeiras aplicando uma fórmula sob medida. O Nono é inconstitucional, claro, só se alguém decide utilizar sua competência para controvertê-lo frente à Suprema Corte. Busca-se valentes. Creiam em mim, não sairão da classe política.

Todavia, se não me lembro mal, hoje contamos com um órgao regulador especializado na matéria, autônomo em suas decisões e de caráter técnico (não político) que tem em suas mãos essa competência. Ninguém melhor que o Instituto para solicitar que a Suprema Corte sancione a legalidade de um artigo que, na prática, converte o regulador mexicano em secretaria dos regulados: “com a novidade que acabo de fechar um negócio por 8.500 milhões de pesos. Tome nota, por favor”. Veremos

Segunda informação. Todo o debate suscitado em torno de se a preponderância deveria ser definida por setor ou serviço, se encontra estreitamente vinculado com o Nono Transitório. Como mero dado anedótico, a existência deste artigo haveria sido impossível se o legislador houvesse decidido que a preponderância é aplicável aos serviços de telecomunicações e não aos setores. Haveria sido inconcebível aceitar a inclusão de um artigo que outorga carta branca para que se siga concentrando participação de mercado em determinado serviço quando, por outro lado, a preponderância limita esta participação a 50% do mesmo. Só defendendo como gatos de barriga para cima a interpretação setorial a Televisa poderia levar este negócio lucrativo para casa. Só assim.

Embora não seja tema do presente artigo, o que no fim temos é um cenário em que nem a televisão aberta nem a paga serão reguladas por via da preponderância. Sim, suponhamos, há outras vias nas quais não existe um mandato constitucional, nas quais o sustento e motivação são radicalmente diferentes, para as quais correm outros prazos e nas quais, depois de largos processos de investigação, não necessariamente se termina impondo alguma restrição. Quero ver, além disso, quem será o valente que mandará a Televisa desincorporar sua mais recente aquisição, concentre o que concentre, prepondere o que prepondere.

Terceira e última informação. O Nono Transitório não é um presente exclusivo para Televisa. É na realidade uma permissão para que todo aquele que não se chame Carlos Slim possa aproveitar esta época e faça de quanto negócio de telecomunicações queira.  A fórmula está desenhada (de novo, setorialmente) de tal forma que a margem de manobra para compras, cessões ou mudanças de controle ocorram diante do olhar passivo do regulador na matéria. Regulador de madeira que observa como os regulados decidem que transação convém, qual gera eficiências, qual os coloca em uma melhor posição para competir. Todo o anterior, supostamente, tendo o consumidor no centro de suas preocupações e como destinatário único dos benefícios. Não os compreendamos mal.

 *Mony de Swaan é ex-comissário Presidente da Comissão Federal de Telecomunicações (COFETEL).

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