Introdução
A crescente intervenção de plataformas de Internet no conteúdo de seus usuários se tornou um tópico de preocupação em todo o mundo. De fato, o “controle privado” tem sido considerado um dos três principais desafios para a próxima década e uma “ameaça à liberdade de expressão”, nada menos do que pelos Relatores da Liberdade de Expressão1. Para eles, “uma característica transformadora do ambiente de comunicação digital é o poder das empresas privadas e, particularmente, das redes sociais, plataformas de busca e outros intermediários, em comunicações, com enorme poder concentrado em poucas empresas”.
Essa preocupação não é nova, já que em muitas ocasiões tanto organizações internacionais quanto organizações de direitos digitais questionaram essas práticas e formularam recomendações para que as empresas fizessem uma mudança nas políticas e práticas em conformidade com os padrões internacionais de direitos humanos2.
Por sua vez, a Relatoria de Liberdade de Opinião e Expressão das Nações Unidas publicou diversos relatórios sobre o assunto3 e a Relatoria para a Liberdade de Expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) observou durante anos que “intermediários devem evitar que suas atividades causem ou contribuam para consequências negativas sobre o direito à liberdade de expressão” em suas ações voluntárias de moderação de conteúdo, que “só devem ser consideradas legítimas quando tais restrições não impeçam ou obstaculizem arbitrariamente as possibilidades de expressão de uma pessoa na Internet”4.
Também é crescente o interesse de governos e parlamentos – em ambientes autoritários, mas também em democracias consolidadas – por regular sua atividade e a distribuição de conteúdo através de diferentes tipos de regulamentação, particularmente regulando o conteúdo disseminado nas redes sociais. Mas a maioria dessas iniciativas legais configura soluções que são ilegítimas ou desproporcionais, atribuindo responsabilidades e obrigações que tornam as plataformas juízes ou polícias privadas sobre os conteúdos de terceiros que podem circular na Internet.
Os signatários deste documento se opusemos a essas propostas e continuaremos a fazê-lo. Mas acreditamos que o modelo de autorregulação que tem prevalecido até agora foi exaurido no atual desenvolvimento da Internet, onde algumas poucas corporações centralizaram e concentraram a circulação, troca ou busca de informações e opiniões, distorcendo a ideia de uma Internet descentralizada, livre e aberta pela qual lutamos.
Diante desse cenário polarizado de “autorregulação corporativa versus regulação autoritárias ou excessiva”, várias organizações latino-americanas acreditamos que é necessário e possível construir um terceiro caminho. O de construir uma proposta de regulação democrática, adequada e inteligente, capaz de assegurar ambientes normativos adequados para proteger os direitos humanos das ações dos gigantes tecnológicos, respeitando os padrões internacionais de direitos humanos.
O poder de gatekeepers que essas empresas de Internet têm exige que as sociedades democráticas sejam capazes de estabelecer limitações a seus poderes para garantir a efetividade dos direitos e liberdades historicamente reconhecidos, bem como a predominância do interesse geral e público.
A proposta não pretende atingir todos os intermediários da Internet, mas sim determinados tipos de plataformas e aplicativos cujo principal serviço é permitir ou facilitar o acesso à informação disponível na Internet e/ou ser suporte para expressão, comunicação e troca de conteúdo entre seus usuários (Isso inclui redes sociais, mecanismos de pesquisa e plataformas de compartilhamento de vídeo, por exemplo, embora não para serviços de mensagens).
Um princípio de “regulação progressiva” é proposto com base no impacto que as medidas tomadas pelos intermediários têm no exercício dos direitos fundamentais na Internet, especialmente a liberdade de expressão. Ou seja, o regulamento deve ser mais rigoroso no caso de grandes plataformas que, devido ao seu porte e abrangência, tenham se tornado espaços públicos de deliberação e/ou principais vias de acesso para o acesso à informação, com um nível de concentração excessivo.
Tendo em vista as características especiais da internet, busca-se criar um ambiente normativo adequado ao funcionamento e às características da rede, que inclua mecanismos de autorregulação, co-regulação e regulação pública, com o entendimento de que os desafios apresentados pelo novo cenário digital (dentre outros, a velocidade e volume de informações) não permitem a aplicação de soluções únicas e iguais do que em outros sistemas de informação e comunicação.
O documento não propõe uma legislação que determine qual conteúdo pode ser divulgado na Internet e qual não, nem obriga as plataformas a moderar o conteúdo. Mas, se decidirem fazê-lo, uma série de condições será estabelecida para que os direitos fundamentais de seus usuários não sejam violados. Para isso, são incluídas propostas sobre quais são os limites para a moderação dos conteúdos que estas plataformas já realizam, para que seus termos de serviços, seus critérios e seus procedimentos sejam compatíveis com os padrões internacionais de direitos humanos, levando especialmente em consideração a proteção de minorias e grupos vulneráveis.
Uma regulamentação democrática e equilibrada também deve proteger as plataformas das pressões ilegítimas de governos e outros atores. Devido ao seu papel como intermediários, elas são fundamentais para facilitar o exercício desses direitos e, portanto, a proposta inclui recomendações para que os marcos regulatórios lhes permitam desempenhar esse papel de
maneira apropriada: a não responsabilidade legal pelo conteúdo de terceiros ou a proibição de obrigá-los a acompanhamento genérico ou supervisão de conteúdo são algumas delas.
A regulamentação privada na Internet é produzida e agravada por um contexto de forte concentração de poder em poucas corporações internacionais. A regulação pública sobre as atividades das plataformas deveria adotar medidas antimonopólicas para enfrentar o cenário de concentração e ausência de concorrência, mas elas não estão incluídas nesta oportunidade. A simples ideia de que os principais espaços públicos para a circulação de informações e opiniões são todos controlados pela mesma empresa deveria forçar os órgãos antitruste dos Estados Unidos e de outros países a agir.
Tampouco se incluem nesta proposta questões importantes como mecanismos para garantir o pluralismo e a diversidade na Internet ou o que diz respeito às questões tributárias. O documento se concentra em questões relacionadas à moderação de conteúdo, com princípios de aplicação geral. As especificidades de determinados serviços justificam também abordagens específicas. Por exemplo: para serviços de intermediação e publicação de bens culturais, poderiam ser adotadas obrigações positivas para a proteção e promoção da diversidade cultural, em conformidade com a Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais da UNESCO.
Finalmente, as normas e desenhos institucionais adotados devem ser adequadamente desenvolvidos, levando em conta as necessidades da regulação do mercado em contínuo desenvolvimento, as características particulares do ambiente digital em cada país e as necessidades específicas da América Latina, no marco dos padrões internacionais de direitos humanos.
O documento está organizado nos seguintes capítulos:
1. Alcance e caráter da regulação
2. Termos e condições de serviço
4. Aplicação de políticas e devido processo
5. Direito à defesa e reparação
7. Aprovação e aplicação da regulação
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1 Declaração Conjunta: Desafios para a liberdade de expressão na próxima década do Relator Especial das Nações Unidas (ONU) para a Liberdade de Opinião e Expressão, o Representante da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE) para o Liberdade dos meios de comunicação, o relator especial da Organização dos Estados Americanos (OEA) para a Liberdade de Expressão e o Relator Especial sobre Liberdade de Expressão e Acesso à Informação da Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos Povos (CADHP), 2019
2 Entre elas, os Princípios de Santa Clara
3 Regulamento do conteúdo na Internet, Relatoria Especial sobre a Promoção e Proteção do Direito à Liberdade de Opinião e Expressão, 2018
4 Liberdade de Expressão e Internet, Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão CIDH, 2013, par. 111
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