Por CEJIL*
Em seu último período ordinário de sessões1, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) divulgou sua decisão sobre o caso Miguel Ángel Millar Silva e outros, conhecido também como “o caso da Rádio Estrella del Mar de Melinka”. A sentença da CIDH é um importante precedente para a região, porque é a primeira vez que órgãos de proteção do sistema interamericano se pronunciam – quanto a um caso individual – sobre o papel fundamental que cumprem as rádios comunitárias e também sobre a relação entre essas rádios, o direito à liberdade de expressão e a existência de uma sociedade democrática.
A Rádio Estrella del Mar, localizada em Melinka, um pequeno povoado portuário do arquipélago Las Guaitecas, na região sul do Chile, era usada como meio de comunicação e informação por organizações sindicais e de bairro. No final do ano de 1999, a Rádio foi excluída do regime de fornecimento de energia elétrica que o governo municipal mantinha para os outros meios de comunicação. Como consequência, o horário de transmissão da rádio foi reduzido drasticamente; limitado ao período das 17h à meia-noite, a Rádio Estrella del Mar ficou em uma situação de desigualdade frente aos outros meios, que puderam manter sua operação durante as 24h do dia.
Em seu relatório, a CIDH reconheceu que a decisão de submeter a rádio comunitária Estrella del Mar a um regime de fornecimento de eletricidade distinto ao que recebiam os outros meios de comunicação da ilha violava o direito à liberdade de expressão e o direito à igualdade de trabalhadores e ouvintes da rádio, direitos que estão protegidos pela Convenção Americana sobre Direitos Humanos.
Em relação à liberdade de expressão, a Comissão reiterou seus princípios sobre a dupla dimensão – individual e social – deste direito2 e destacou a condição da liberdade de expressão como elemento fundamental para a existência de sociedades democráticas, com foco no papel dos meios de comunicação para a materialização desse direito nos seguintes termos: “(…) assim como os sindicatos são instrumentos para o exercício do direito de associação dos trabalhadores e das trabalhadoras, e os partidos políticos são veículos para o exercício dos direitos políticos das cidadãs e dos cidadãos, os meios de comunicação são mecanismos que servem ao exercício do direito fundamental à liberdade de expressão daqueles que os utilizam como meio de difusão de suas ideias ou informações”.
Os eventos ocorridos em Melinka permitiram que a Comissão Interamericana avançasse quanto a considerações sobre temas como a distribuição que o Estado faz de bens e recursos públicos, a censura indireta e a igualdade e não discriminação no trato dado pelo Estado a rádios comunitárias.
Sobre esses temas, a CIDH destacou a relação entre funcionamento de meios e alocação de recursos públicos: “o controle e a distribuição de bens e recursos públicos que influenciam ou podem influenciar em seu funcionamento [dos meios de comunicação] são decisões que têm um claro efeito sobre o direito à liberdade de expressão, em sua dupla dimensão: o direito das pessoas que utilizam esses meios a expressar-se livremente, e o direito de toda a sociedade a receber ideias e opiniões diversas (…)”4, declarou a Comissão. No caso da Rádio Estrella del Mar, o Estado, quando resolve fornecer energia elétrica em horários diferenciados, está decidindo qual é a voz que o público pode escutar e definindo também as fontes de informação que cada pessoa tem a sua disposição para embasar decisões que incidirão sobre seu plano de vida.
Ainda no relatório, a CIDH destacou a forma com a qual os Estados devem conduzir a distribuição de bens públicos, afirmando que, para a outorga de tais recursos, devem ser cumpridas obrigações formais e substanciais. As formais supõem a existência de critérios e procedimentos claros, objetivos e transparentes; já as substanciais requerem uma sintonia com os princípios de igualdade e de não discriminação e com a proibição da arbitrariedade”.5
Além disso, a Comissão impôs limites claros à jurisdição do Estado, afirmando que: “O uso abusivo dos poderes do Estado neste tema, com o objetivo de pressionar, castigar, premiar ou privilegiar comunicadores sociais e meios de comunicação em função de suas linhas informativas constitui uma restrição indireta à liberdade de expressão, proibida pelo artigo 13.3 da Convenção Americana, e uma ofensa ao princípio de igualdade, expressado no artigo 24 do mesmo tratado”.6
De acordo com a decisão da CIDH, os Estados têm a obrigação de dispor de regras mínimas que respeitem princípios como o interesse público, a transparência, a rendição de contas e a não discriminação; devem também distribuir o que é um serviço público escasso entre diferentes meios de comunicação sob critérios predeterminados, objetivos e razoáveis; além disso, a decisão deve estar devida e suficientemente motivada e deve ser levada a conhecimento público por meio de procedimentos transparentes e acessíveis.
Sendo assim, consideramos que os critérios elaborados pela CIDH não apenas têm implicações para este caso concreto e para o Chile, mas também para outros contextos e situações nos quais o exercício da liberdade de expressão pode ser afetado pelo uso abusivo que um Estado faça de seus poderes na distribuição de bens públicos. A Comissão determinou claramente que não se pode permitir que por detrás de um aparente exercício legítimo de faculdades do Estado se escondam medidas discriminatórias ou de censura indireta para castigar ou pressionar um meio de comunicação pela difusão de opiniões críticas. Estes princípios, sem dúvida, contribuirão para o fortalecimento das democracias em nossa região.
* O Centro pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL) é copeticionário no caso, junto a comunicadores, a ouvintes de rádio da cidade de Melinka e à Associação Mundial de Rádios Comunitárias (AMARC).
1Nos referimos ao 156° Período Ordinário de Sessões, realizado na sede da CIDH em Washington, de 17 a 28 de outubro de 2015.
2CIDH. Relatório N° 77/15. Caso 12.799. Miguel Ángel Millar Silva e outros (Rádio Estrella del Mar de Melinka). 26 de outubro de 2015, parágrafo 41.
3CIDH. Relatório N° 77/15. Caso 12.799. Miguel Ángel Millar Silva e outros (Rádio Estrella del Mar de Melinka). 26 de outubro de 2015, parágrafo 43.
4CIDH. Relatório N° 77/15. Caso 12.799. Miguel Ángel Millar Silva e outros (Rádio Estrella del Mar de Melinka). 26 de outubro de 2015, parágrafo 52.
5CIDH. Relatório N° 77/15. Caso 12.799. Miguel Ángel Millar Silva e outros (Rádio Estrella del Mar de Melinka). 26 de outubro de 2015, parágrafo 51.
6CIDH. Relatório N° 77/15. Caso 12.799. Miguel Ángel Millar Silva e outros (Rádio Estrella del Mar de Melinka). 26 de outubro de 2015, parágrafo 76.