“É possível que o negócio tenha sido alterado, como sugerem os canais privados, e que a medida do “must-carry” tenha que ser avaliada neste novo contexto. Porém, não era responsabilidade da Autoridade Nacional de Televisão da Colômbia afastar-se de seu mandato legal para dar essa guinada”.
Carlos Cortés*/ Colômbia, outubro 2014
Depois de uma longa espera, a Autoridade Nacional de Televisão da Colômbia (ANTV), tomou uma decisão sobre a inclusão dos canais de televisão abertos nos serviços de televisão por assinatura. O organismo decidiu esperar, mas não resolveu a questão: usando uma linguagem atravessada, abriu novas consultas, e até onde foi possível ter algum nível de clareza, optou por reinterpretar uma lei que vinha sendo aplicada de outra forma desde 2001.
Comecemos com uma revisão: desde que os canais privados de radiodifusão aberta – RCN e Caracol – começaram a funcionar, há mais de dez anos, as empresas de televisão por assinatura vêm incluindo esses sinais na sua oferta de programação sem nenhuma contraprestação. Essa inclusão é feita em virtude da obrigação de “must-carry”, ou “dever de transportar”, da Lei 680 de 2001. Tal norma, como seu nome indica, determina que a TV por assinatura deva incluir os sinais de canais abertos – privados ou públicos – para assegurar uma maior oferta e uma maior penetração dos conteúdos nacionais.
Contudo, em abril de 2014, RCN e Caracol exigiram um pagamento mensal das operadoras de televisão paga – em razão do número de assinaturas de cada uma – pelo sinal em HD (alta definição). RCN pediu cerca de U$0,40 por assinante e Caracol aproximadamente U$0,30. Com 4,7 milhões de abonados, isto resultaria em cerca de 3,3 milhões de dólares ao mês.
Diante da negativa de pagamento por parte das operadoras, o sinal foi retirado dos serviços de tevê por assinatura. Durante a Copa do Mundo houve o restabelecimento, mas uma vez que a Alemanha levantou a taça, os canais abertos saíram novamente da programação fechada, com uma questão adicional de que os canais colocaram um prazo final para retirar também o sinal “standard” (para uma explicação mais detalhada sobre o problema, ver www.tvabiertaparatodos.com).
No dia 22 de setembro, a ANTV publicou a resolução No 2291 que, na teoria, resolveria o problema. Em primeiro lugar, ordenou-se que as operadoras de televisão por assinatura distribuíssem o sinal dos canais abertos sem que isso implicasse num custo para os assinantes. Em segundo lugar, a resolução afirma que essa obrigação se aplicará “aos conteúdos do canal principal digital no formato que o operador de televisão aberta escolher”- ou seja, RCN ou Caracol – “atendendo a tecnologia que tenha cada usuário de televisão por assinatura”. E terceiro, dispõe que os canais abertos, com o pretexto de cancelamento de seus direitos econômicos, “não poderão negar seu consentimento prévio e expresso aos operadores de televisão fechada” para a transmissão do sinal.
Tratemos de entender as decisões da ANTV. A primeira parece clara: o ‘must-carry’ se mantem. Segundo o artigo da Lei 680 de 2001 “as empresas de televisão por assinatura deverão garantir sem custo algum aos assinantes, a recepção de canais colombianos de televisão aberta de caráter nacional, regional e municipal (…)”. Em 2003, a Corte Constitucional revisou esta norma e a declarou adaptada a Constituição. Trata-se de uma medida de interesse geral que busca assegurar o pluralismo informativo e que não resulta desproporcional para nenhuma das partes. No caso das operadoras de TV por assinatura, elas não têm que comprar o sinal; simplesmente retransmiti-lo. A princípio, parecia que a ANTV havia incorporado essa interpretação.
Os pontos seguintes, no entanto, não só contradizem essa regra como também resultam absolutamente ambíguos. Por um lado, a ANTV decidiu que a obrigação de ‘must-carry’ seria cumprida com o canal principal de RCN e Caracol no formato que fosse eleito por eles. De onde saiu isso? De uma norma que encontraram no caminho e que não tem nenhuma relação com o ‘must-carry’. Conforme o Acordo 002 de 2012 da Comissão Nacional de Televisão (organismo anterior a ANTV), os canais privados abertos, como operadores múltiplos, podem transmitir seus sinais na configuração que considerem mais adequada. RCN e Caracol, por exemplo, transmitem seu sinal principal em HD. Esta norma não tem nenhuma relação com o ‘must-carry’, que não faz distinção de formato ou de tecnologia. A ANTV a incorpora e, ainda, outorga aos canais abertos o direito de decidir que sinal eles irão entregar.
Por outro lado, e ainda mais confuso, a decisão sobre o formato deve ser feita “atendendo” a tecnologia que cada usuário de televisão fechada tenha. Quer dizer que se eu tenho um serviço HD com Directv, então a Caracol ou RCN podem obrigar a empresa a me entregar um sinal em HD, não importando o serviço que eu tenha contratado? Isso significa que esses canais privados podem fazer acordos exclusivos com uma ou outra empresa para autorizar a transmissão de seu sinal em HD?
O assunto fica ainda mais complicado com o terceiro ponto. A ANTV não disse expressamente – como deveria fazer – que a transmissão do sinal não gera contraprestação econômica, assunto que é o ponto central e que resultou em todo este debate. Ao contrário, disse, quase indiretamente, que os canais abertos não podem negar a autorização da transmissão do sinal com o pretexto dos direitos econômicos. Não podem cobrar? Ou sim, podem cobrar, mas sem suspender a autorização?
Submeter a norma do ‘must-carry’ ao interesse dos canais abertos, a pagamentos ou a acordos exclusivos equivale a acabar com ela. Isso é o que querem hoje RCN e Caracol, interesse que não tinham no final da década de 1990 e início deste século. Que os serviços por assinatura tivessem seus sinais naquela época foi fundamental para que os canais abertos construíssem sua enorme audiência e obtivessem maiores lucros. Por sua vez, para os canais públicos – nacionais e regionais – essa foi a melhor plataforma para assegurar uma difusão que, sujeita a critérios comerciais, não poderiam ter. E para a sociedade em geral, da qual 81% consomem televisão através de sistemas fechados e que somente em algumas cidades pode acessar a televisão digital terrestre, o ‘must-carry’ tem sido uma chancela a favor do acesso diverso aos conteúdos.
É possível que o negócio tenha sido alterado, como sugerem os canais privados. É possível que a regulação da televisão necessite de atualizações, que a medida do ‘must-carry’ tenha que avançar neste novo contexto (eu considero que deve se manter). Porém, não era responsabilidade da ANTV afastar-se de seu mandato legal para dar essa guinada. Muito menos aceitável tem sido a tática de coerção exercida pela RCN e Caracol, alegando que desde que iniciaram esta disputa estão cumprindo sua obrigação legal. Se existe um lugar no qual deve acontecer essa discussão é no Congresso, junto com a sociedade civil. A televisão é claramente um negócio, mas é também um serviço público e um desenvolvimento da liberdade de expressão.
* Já atuou como pesquisador do Centro de Estudos em Liberdade de Expressão (CELE) da Universidade de Palermo; é assessor em regulação da mídia e tecnologia.