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Análisis - Argentina

O futuro das políticas de comunicação na Argentina: ferramentas para pensar o cenário pós-eleitoral

“… o que está em jogo é a consolidação de uma política pública de longo prazo, que deve ser pensada para o benefício da sociedade em todo seu conjunto e não estar sujeita a vaivéns eleitorais…”

Bernadette Califano*/Novembro 2015.

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Em 10 de dezembro, a Argentina terá um novo governo, que deverá definir o rumo de suas políticas de comunicação. Quem quer que ocupe a cadeira presidencial contará com uma Lei de Serviços de Comunicação Audiovisual (LSCA) que tem servido de modelo para outros marcos jurídicos da região e que representa um dos legados mais transcendentais no âmbito da regulação de meios de comunicação desde o retorno da democracia no país, em 1983.

A LSCA foi aprovada por maioria no congresso argentino em 2009, depois de um processo de debate amplo e participativo, até então inédito na história das políticas de comunicação no país. A lei contou com o apoio de centenas de organizações sociais que, centralizadas na Coalizão por uma Radiodifusão Democrática, reivindicavam há vários anos a derrubada da lei de radiodifusão promulgada nos anos da ditadura e a construção de um novo marco regulatório que abrangesse 21 pontos básicos pelo direito à comunicação.

Já se passaram seis anos desde a promulgação da lei, com um forte embate entre o governo e diversos meios de comunicação locais (principalmente o Grupo Clarín) e um intenso e necessário debate público sobre o papel dos meios de comunicação na sociedade. O processo de aplicação da LSCA tem sido lento – entre outras razões, devido à extensa judicialização da qual a lei foi objeto – e não conseguiu cumprir com as grandes expectativas iniciais, em especial quanto à desconcentração do mercado de mídia.

Mas o foco deste artigo não é fazer um balanço da aplicação da lei, e sim destacar o que vem a seguir depois da mudança de presidente na Argentina. Vale a pena esclarecer que este artigo foi escrito uma semana antes do segundo turno das eleições no país, uma votação que definirá se quem vai ocupar a Presidência da Argentina pelos próximos quatro anos será o candidato governista pela Frente para la Victoria, Daniel Scioli, ou o líder da oposição com o Cambiemos, Mauricio Macri.

Nenhum dos dois candidatos tem uma agenda clara a ser seguida com relação a políticas públicas de comunicação; o tema não é parte explícita de suas propostas eleitorais (que podem ser consultadas neste link e neste, ambos em espanhol) e tampouco foi mencionado no debate histórico realizado entre os dois.

No caso de uma eventual vitória do candidato governista, espera-se alguma continuidade da política que a Frente para la Victoria tem conduzido ao longo dos últimos anos em temas relacionados à comunicação audiovisual. Mesmo assim, o mistério continua: a história recente mostra que dentro de uma mesma orientação política, as regulações sobre o sistema de meios de comunicação podem ser bastante diferentes, como aconteceu nos períodos de 2003 a 2007, de 2007 a 2011 e entre 2011 e 2014; tais regras devem ser analisadas observando-se todo um amplo contexto de variáveis conjunturais e político-institucionais.

Ao contrário do que se espera do Frente para la Victoria, o candidato da coalizão Cambiemos tem criticado a lei audiovisual durante a campanha e já anunciou em algumas ocasiões que poderia até modificá-la caso seja eleito presidente: “para que tenhamos uma lei que respeite os desafios do século XXI, como um maior acesso à informação, maior liberdade de expressão e que inclua a internet”, declarou Macri.

Mesmo entendendo que toda norma pode ser melhorada, consideramos oportuno apontar algumas das questões que qualquer governo futuro deveria levar em conta durante o planejamento de sua política pública de comunicação.

O texto da LSCA traz consigo um paradigma baseado no direito humano à liberdade de expressão que foi elogiado pelo relator para a Liberdade de Expressão da Organização das Nações Unidas (ONU), além de ter recebido destaque no informativo de 2009 da Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão da Organização dos Estados Americanos (OEA). Na mesma linha, a sentença da Corte Suprema de Justiça da Nação argentina, em 2013, sobre a ação judicial interposta pelo Grupo Clarín, resgatou vários princípios do Sistema Interamericano de Direitos Humanos para ratificar a constitucionalidade da lei e abrir uma jurisprudência sobre a importância da intervenção do Estado na promoção e proteção a esse direito, tanto para indivíduos como para a coletividade. Sendo assim, tentar modificar a lei com base no argumento da constitucionalidade, ou mesmo insistir em uma possível autorregulamentação do mercado de meios de comunicação é algo que carece de fundamentos sólidos.

Por outro lado, o próximo presidente da Argentina deverá encarar o fato de que nenhuma força política terá quórum suficiente em nenhuma das câmaras do Congresso da Nação argentina a partir de 10 de dezembro. Assim, qualquer modificação na lei precisará de consensos que, a priori, parecem difíceis de ser alcançados – basta lembrar que muitos dos legisladores do Propuesta Republicana (PRO), partido do candidato Mauricio Macri, e da Unión Cívica Radical (UCR), que hoje formam a aliança Cambiemos, abandonaram o plenário ou votaram contra a LSCA em 2009. Ernesto Sanz, um dos principais organizadores do Cambiemos, afirmou que os políticos da aliança não teriam dúvidas em recorrer a “decretos de necesidad y urgencia (DNU) (ferramentas do governo argentino com força e aplicação similares às Medidas Provisórias brasileiras) para realizar várias mudanças que não podem ser feitas por via parlamentar, algo que significaria retroceder a uma nefasta tradição regulatória em matéria de rádio e televisão na Argentina.

Ainda assim, vale a pena evitar o risco de voltar a cair em discursos que conclamem leis “todas poderosas”, como aconteceu durante os debates pela LSCA. A lei regula a atividade cultural realizada pelos prestadores de serviços de comunicação audiovisuais, o que engloba a radiodifusão televisiva e sonora (independentemente da plataforma utilizada), aberta ou fechada. Sua competência não alcança a imprensa nem a telefonia. É verdade que o veloz crescimento da internet estabelece cada vez mais desafios para a elaboração de políticas públicas integrais, que têm um número enorme de arestas (legais, econômicas, de infraestrutura, socioculturais, de direitos dos usuários, etc.). Também é certo que ainda há dúvidas quanto à regulação do acesso à informação pública em todo o país e quanto à distribuição da publicidade oficial. Porém, se trata, em cada caso, de regulações que requerem um nível de detalhe, discussão e especificidade que nenhuma “macro-lei de meios de comunicação” pode abranger.

Recentemente, alguns têm questionado como funciona a Autoridade Federal de Serviços de Comunicação Audiovisual (AFSCA), encarregada de aplicar a lei. Menciona-se também a possibilidade de intervenção na AFSCA, e de fusão entre as autoridades regulatórias criadas pela LSCA e pela Lei Argentina Digital em um único órgão. Mesmo que esta última autorize as empresas de telecomunicações a prestar serviços de comunicação audiovisual e habilite legalmente um mercado convergente, uma discussão mais ampla teria que ser aberta sobre a conveniência – ou não – de contar com um macro-organismo regulador, quando ainda nem sequer foi possível alcançar o cumprimento efetivo das duas leis. De qualquer jeito, deve-se lembrar de que é a primeira vez na história em que a autoridade regulatória conta com representantes de vários partidos políticos, eleitos por um período de quatro anos (com dois de diferença com relação ao mandato do Poder Executivo), com o objetivo de evitar que seus cargos estejam submetidos a oscilações eleitorais.

Mesmo que ainda não tenha sido possível conseguir a plena aplicação da LSCA, é importante não voltar atrás no caminho percorrido nos últimos anos, com destaque para: o desenvolvimento da TV Digital Aberta e a instalação de estações de transmissão em diferentes pontos do país; a política federal de fomento à produção audiovisual, junto com o programa Polos e o banco de conteúdos audiovisuais digitais abertos; a criação e o início do funcionamento de novos órgãos como a Defensoria do Público; as atividades para a preservação e a digitalização do material audiovisual e sonoro do Canal 7 e da Rádio Nacional do país por meio do arquivo histórico da Rádio e da Televisão Argentina – entre outras importantes iniciativas.

O próximo governo deverá continuar com a transição à TV digital; o apagão analógico está previsto para 2019. Deverá também seguir com a organização e a redistribuição do espectro, para cumprir com a reserva de 33% prevista na LSCA para os setores sem fins lucrativos. Além disso, ainda está pendente o processo de adequação à lei de vários grupos que excedem os limites de concentração de licenças permitidos. Particularmente, uma decisão deverá ser tomada quanto à adequação de ofício (por decisão judicial) do Grupo Clarín, que está suspensa por força de duas medidas cautelares (uma a partir de uma ação iniciada por jornalistas do grupo e outra por uma ação impetrada pelo próprio grupo com suas várias plataformas de mídia), que estarão em vigência até fevereiro de 2016.

Em síntese, o que está em jogo é a consolidação de uma política pública de longo prazo, que deve ser pensada para o benefício da sociedade em todo seu conjunto e não estar sujeita a vaivéns eleitorais; uma política pública na qual o Estado intervenha para garantir o direito à comunicação e à liberdade de expressão, em interação com uma ampla rede de atores sociais que já não pode ser evadida nos processos de elaboração de políticas de meios de comunicação.

* Doutora em Ciências Sociais pela Universidade de Buenos Aires (UBA). Pesquisadora da área de políticas de comunicação e regulação da mídia (UBA/CONICET/UNQ). Docente do curso de Ciências da Comunicação (UBA). Twitter: @bernacali

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