‘O que fazer quando essas plataformas usam de seu poder para remover unilateralmente e tirar do ar o que consideram impróprio?’
Em tempos de avanço da censura estatal e do abuso de mecanismos de controle do governo sobre políticas públicas que deveriam promover o exercício da liberdade de expressão de grupos minoritários na sociedade, a garantia da circulação de ideias não hegemônicas no ambiente virtual se torna ainda mais relevante. Para a difusão de informações e de conteúdos jornalísticos, as plataformas digitais tem sido espaços fundamentais para se dialogar com um público historicamente alcançável no Brasil apenas por veículos de comunicação de massa como o rádio e a televisão.
Mas o que fazer quando essas plataformas, que globalmente já detêm poder suficiente para definir o potencial de circulação de qualquer conteúdo na Internet, usam de seu poder discricionário – baseado no que chamam de “padrões da comunidade” – para remover unilateralmente e tirar do ar o que, enquanto empresas privadas, consideram “impróprio”?
O assunto tem preocupado acadêmicos, especialistas e organizações de defesa da liberdade de expressão em todo o mundo. Sem desconsiderar o volume gigantesco de vídeos, textos e imagens publicados diariamente nas redes e a importância de se estabelecer regras para a veiculação de determinados materiais que explicitamente violam direitos, muitos estudiosos tem questionado que limites as grandes plataformas digitais deveriam respeitar antes de remover informações e opiniões de suas páginas.
Num esforço de encontrar respostas democráticas para a questão, o Intervozes, em parceria com organizações da América Latina lideradas pelo Observacom – Observatório Latinoamericano de Regulação, Meios e Convegência, promove uma consulta pública sobre o tema, até 15 de outubro. O objetivo é desenvolver uma perspectiva regional para processos de moderação de conteúdo compatíveis com os padrões internacionais de direitos humanos.
Em meio a este debate, tivemos acesso a um caso envolvendo um veículo jornalístico brasileiro que apenas comprova a urgência desta discussão. Compartilhamos abaixo o manifesto da redação da “Ponte Jornalismo”, que retrata um problema ao qual todos nós, defensores da liberdade de expressão e de imprensa, estamos sujeitos. Ao debate, então.
Pelo fim da censura
A Ponte Jornalismo é um veículo independente, o único especializado na cobertura de Justiça e segurança pública a partir dos direitos humanos. Surgimos em 2014. Nesses cinco anos, denunciamos centenas de casos de torturas, assassinatos, prisões arbitrárias, espionagem ilegal e outras violações de direitos humanos, a maioria delas praticadas por agentes do Estado. Ajudamos a tirar da cadeia pelo menos quatro pessoas vítimas de acusações injustas. Mesmo assim, nunca deixamos de sofrer com a censura imposta por Google e Facebook, que atinge principalmente os veículos contra-hegemônicos.
Todos devem ter visto, no início do mês, a imagem de um jovem negro torturado no supermercado Ricoy, na zona sul de São Paulo, por seguranças de uma empresa ligada a um policial militar aposentado. A imagem é chocante, e por isso mesmo é importante. Foi a divulgação dessa imagem que levou à prisão dos dois responsáveis pelo crime e vem enriquecendo o debate sobre o racismo no Brasil.
Nós, da Ponte Jornalismo, conversamos com o jovem agredido e com seu irmão, e eles apoiaram a divulgação do vídeo com o objetivo de denunciar o crime praticado contra eles. Tomamos o cuidado de borrar a imagem do jovem. Mas, mesmo com todas essas precauções, tanto o YouTube quanto o Facebook removeram da nossa conta o vídeo que postamos mostrando essa violação, alegando que o mesmo violava “as diretrizes da comunidade”. O Twitter manteve o vídeo disponível.
Trata-se de uma censura feita com uma boa intenção: a de impedir a divulgação de vídeos que violem direitos. Mas continua a ser uma censura, e do pior tipo. Por quê? Elencamos aqui quatro razões:
1) É discriminatória: atinge com mais força os veículos menores. Para ficar no exemplo do jovem torturado, o mesmo vídeo que a Ponte foi obrigada a tirar do ar está até agora disponível no canal do YouTube no Estadão.
2) É estúpida: não sabe diferenciar vídeos que promovem violações de direitos daqueles que denunciam as violações. A Ponte já foi proibida de divulgar imagens em que um simpatizante do nazismo atacava um grupo de jovens: https://ponte.org/nazista-aplaudido/. A censura foi motivada pela mesma regra arbitrária e genérica de “violação das diretrizes da comunidade”.
Para não ficar só no nosso exemplo, o “Poder 360” também foi censurado ao publicar um vídeo que mostrava um discurso oficial de um senador contrário aos direitos humanos: https://www.poder360.com.br/midia/youtube-pune-canal-do-poder360-por-divulgar-video-de-senador-discursando/
3) É sumária: a censura é feita sem transparência nem explicações. Os canais de diálogo abertos por Google e Facebook para contestar suas ações de censura são ridículos. O Google, por exemplo, disponibiliza no YouTube apenas a possibilidade de enviar um texto de 200 caracteres (pouco mais de uma frase) contestando a remoção do conteúdo. Essa contestação só pode ser feita uma vez.
4) Tem consequências sérias: a censura de YouTube e Facebook consegue ser pior do que aquela que era praticada pelos censores da ditadura militar no interior das redações, porque não se limita a proibir a circulação de informação. Ela também pune. Já ficamos impedidos de fazer postagens no YouTube e tivemos a monetização de nossos vídeos retirada por conta do mesmo caso, que consideramos arbitrária. Imagine um censor que, além de proibir um jornal de publicar uma notícia, ainda o obrigasse a ficar uma semana sem publicar e o obrigasse a circular sem anúncios. É assim que o YouTube age.
O que fazer?
Consideramos muito positivo que Google e Facebook estejam dispostos a conversar e queiram ser parte da solução, não apenas do problema. Assim sendo, nossas sugestões para que as duas plataformas deixem de violar a liberdade de imprensa são duas:
– A criação de regras próprias para o conteúdo postado por veículos de mídia. O conteúdo noticioso precisa de um olhar atento, capaz de diferenciar apologia de denúncia, e não pode ser removido com base apenas em ação de algoritmos. O critério para definir quem é veículo de mídia, naturalmente, deve ser autodeclaratório: veículo de mídia é quem diz que é.
– A criação de um canal de comunicação real com os veículos de mídia para contestar possíveis remoções de conteúdo e penalidades impostas. Esse processo precisa ser feito com bases em regras claras, e tanto YouTube quanto Facebook precisam informar com clareza, transparência e agilidade por que removeram um conteúdo. E nós, como jornalistas, temos que ter o direito de contestar isso e de receber uma resposta a esse respeito. A título de comparação, recomendamos como modelo o sistema da Lei de Acesso à Informação no Brasil, em que é possível contestar informações negadas, saber por que foram negadas e recorrer.
Isso não costuma acontecer quando nossos conteúdos são removidos das redes sem explicações. Esperamos que isso não aconteça mais. Pelo fim da censura.
Ponte Jornalismo